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Quando o rap não vem pra arrancar cabeças, vem pra plantar sementes - Desdobramentos sobre AmarElo



Quando o Emicida anunciou que lançaria um novo álbum, seus fãs e admiradores consciente e inconscientemente começaram a criar expectativas sobre o que estaria por vir. Eu fui uma dessas pessoas que começou a imaginar o que ele poderia trazer pra cena ao mesmo tempo em que lançava expectativas sobre o que eu queria que ele trouxesse. Dentro desses dois processos há muita especulação, visto o que ele já produziu ao longo de toda a carreira e os últimos singles lançados em uma época antecedente ao disco, como Pantera Negra, Hacia El Amor (pt. Ibeyi), Inácio da Catingueira, Mil Coisas (pt. Drik Barbosa) e outras.


Ao considerar a obra do Emicida, o seu amadurecimento enquanto artista/empresário e um homem preto que se tornou pai durante esse percurso, evidentemente não seria possível que em 2019 ele lançasse algo nos mesmos moldes do que lançou em 2009, o que seria muito, inclusive, pra vários rappers hoje, mas em relação a ele poderíamos esperar algo novo. E, isso fica muito perceptível quando se acompanha cada trabalho seu em sequência temporal. Quer dizer, a única constante é a mudança.


Alguns sites e canais especializados no gênero rap, sem considerar a recepção dos fãs, de imediato ao lançamento, demonstraram que esperavam mais do zika ou que AmarElo não veio tão pesado quanto outros trabalhos anteriores. Entendo que essa recepção seja intensificada pelo momento político em que vivemos desde 2013, pra não ir longe, e, sobretudo, pelo fato de se tratar do primeiro ano de um novo governo federal que sempre demonstrou afinidades com o fascismo. Historicamente, o rap tem sido um alto-falante do povo preto e com a mitigação de nossos direitos e de nossas liberdades atualmente avançando, há uma necessidade de tomar posição diante de tanta tragédia diária. Mas, sem nenhuma dúvida, a obra do Emicida é de uma grandeza (devido ao impacto artístico e social) que não se compara à uma figura política tão deplorável, até mesmo pra quem o apóia ou apoiou, e isso é fácil de se afirmar porque das duas coisas uma vai passar e a outra vai ficar. Não é mesmo?


Em 2014, quando os Racionais MC's lançaram "Cores e Valores", após 12 anos sem o lançamento de álbuns, também tiveram um relativo número de fãs do grupo que se mostraram insatisfeitos com o novo trabalho. Isso pode reiterar que às vezes a recepção do público tende ao vício de esperar o que ele mesmo gosta e quer, uma espécie de egocentrismo projetado no outro. Os grandes artistas e grupos, no entanto, são grandes porque leem o mundo sob o qual vivem e produzem obras que fazem sentido para a sua época indo muito além de um momento, assim, perduram entre os considerados clássicos. Essa leitura, muitas vezes, não é transparente para o público em geral que pode levar um tempo para entender o fluxo do que foi criado. Por isso mesmo, tendemos a apontar uma ou outra pessoa como visionária. Por entender tão bem o presente e conseguir produzir algo que soe atual independente do tempo em que se aprecie a obra.


A linguagem do rap em sua origem é direta e incisiva, mas é necessário entender que a linguagem, de um modo amplo, é orgânica, ela tende a mudar, a se desenvolver e ramificar. Há quem prefira o papo reto, há quem prefira o papo de visão, um já vem mastigado, o outro leva tempo pra ser digerido. Um vem pra arrancar cabeças, o outro vem pra plantar sementes. Existem, obviamente, muitas outras formas de se expressar pelo rap, porém, ao considerar esses dois eixos como troncos de sustentação do rap podemos elencar os álbuns de maior impacto para diferentes gerações, que vão do "Rap é compromisso" ao próprio "AmarElo".


Outro fator diferencial que reverbera na obra do Emicida e ganha mais uma vez espaço em AmarElo é o seu lado afetivo influenciado pela sua paternidade. Entre Sol de Giz de Cera pt. Tulipa Ruiz (O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui), Amoras (Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa…) e Cananéia, Iguape e Ilha Comprida (AmarElo) há muito em comum de uma face afetuosa do artista que, de certa maneira, ganha mais espaço no último álbum. No trecho a seguir de Cananéia, Iguape e Ilha Comprida, Emicida brinca com uma criança, provavelmente sua filha, tocando chocalho e subverte a forma dura e brava de viver o rap como cultura transbordando sutileza (para uma melhor experiência, depois de ler o texto completo ouça a música):


Isso!

Não, chocalho tem que ser tocado com vontade!

Tendeu?

Só que sem risadinha, certo?

Sem risadinha porque aqui é o rap, mano, onde o povo é brabo, entendeu?

O povo é mau! Mau! Mau!

Pra trabalhar nesse emprego de rapper, você tem que ser mau!

Tendeu? Sem risadinha, ok?

Será que o Brown passa por isso? Ou o Djonga? Ou o Rael?

Sei lá, meu. Aqui os cara é mau!

Vamo Nave!


Do fundo do meu coração

Do mais profundo canto em meu interior, ô

Pro mundo em decomposição

Escrevo como quem manda cartas de amor [...]”


Para além desse lado afetivo, Emicida também traz muitos temas caros pro último disco, como o mergulho que é dado na espiritualidade desenvolvendo o tema para além da religiosidade em Principia; ou como quando vemos que Paisagem é um poema que soa como mantra criando um clima de paz; ou como percebemos que ainda em AmarElo há espaço para o papo reto, contundente em Eminência Parda; ou quando Emicida relê Alphonsus de Guimaraens em Ismália e consegue narrar a dualidade da dureza que há entre o simbólico e o real na vida do povo negro de hoje, com as participações fundamentais de Larissa Luz e Fernanda Montenegro. Cada um desses pontos que foram brevemente tecidos dão pano pra manga, além de outros temas que não comentei.


Antes que o texto seja concluído, é necessário pontuar sobre o sucesso de AmarElo, os números falam muito (principalmente quando sabemos que números representam pessoas). Seria tendencioso não considerar toda a repercussão positiva que foi gerada em torno do álbum e em volta do pós-AmarElo, tal como AmarElo - O filme invisível e o AmarElo Prisma, que me motivaram a escrever esse texto sobre algumas percepções que tive ao acompanhar essas produções e o espaço que vem sendo dado pelo artista para tratar de conversas acerca de uma alimentação saudável, dos cuidados com a terra, dos cuidados com a saúde mental entre outros assuntos que são postos sob visões descentralizadas de um referencial violento com as coletividades e com a Terra.

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